cadernos andaluzes
(in memoriam)
II. coitadinho dele
adoro a vida que tenho, não me esqueço de o dizer a mim própria, a cada manhã que Deus me concede. bem sei que sou pouco exigente, para os dias que correm. uma velha pateta, sofrida, pobremente vestida - decerto que é assim que me retratam, virando costas com a displicência e a alegria que a juventude, a beleza física, o dinheirito no bolso, normalmente trazem consigo. quem os censura? não eu. não eu. todos os dias carrego comigo, como esta cidade que me viu nascer, viver e onde provavelmente morrerei, a memória dos dias de antigamente. como quando, a partir desta cidade, os mouros ou lá o que eram, dominavam parte importante do que hoje é este país. provavelmente tenho sangue deles, talvez sim. nunca estudei, não sei explicar estas coisas, o ar torrado que os rapazes, em nova, diziam que eu tinha. esplendor (aprendi com um senhor, no outro dia, esta palavra) - ou não será esplendor sentirmo-nos jovens e amadas pelos rapazes da terra? cada qual sabe de si, mas, para mim, isso foi o melhor que tive, até hoje. agora a vida é outra, num rame-rame próprio dos velhos, dos que não contam para as contas. graças a Deus que o tino ainda ficou aqui na cabecinha. e é por isso, se querem saber, que ainda me mantenho viva. todos os dias, à força de pernas e braços, desço do bairro e instalo-me nas ruas mais movimentadas, onde vendo os chocolates, os rebuçados, os doces, que turistas (muitos) e companheiros de luta (poucos) me vão comprando. no dia em que parar, não duro duas estações, é como digo. a sorte de ter uma ocupação, a sorte de ter o que fazer, e o dinheirinho que sempre ajuda a manter a casa arrumada, uma roupita limpa, a pôr comida na mesa. coisas que quem me compra os doces provavelmente não entenderá, mas também para que é que seria preciso que entendessem, bem vistas as coisas? cada um na sua, aprendi com a senhora minhã mãe (Deus a guarde, pobrezinha), que uns nascem para serem poucochinho, mas que talvez haja uma razão para isso. cala-te, mulher, que sabes tu da vida? tantas vezes o teu pai (Deus o guarde, pobrezinho) te deu nas mãos, por meteres o bedelho onde não és, nem nunca foste, chamada. cala-te, mulher. adoro a vida que tenho, já vos disse? podia ser melhor, claro que sim. para outros, mas não para mim. gosto de me levantar bem cedo, de cruzar as ruas com os turistas que querem ver o palácio em sentido contrário. não há lá nada, já morreu tudo, mas querem ver, dizem que é um monumento importante. não sei, nunca estudei, mal sei ler. dizem que sim, que é, e eu acredito. levanto-me cedo, desço do bairro, dou uns dedos de conversa a quem calha, monto a tenda devagarinho, numa sombra que dê jeito e traga gente, e sigo o dia, vendendo o que posso. uns euros aqui, uns euros ali, coisa pouca, mas honesta, como aprendi com quem já não está cá (Deus guarde as minhas tias e o meu homem, pobrezinhos).
hoje, vi um rapaz a olhar para mim, tão triste, que nem queiram saber. coitadinho dele. apesar de estrangeiro, ninguém merece tanta tristeza. uma velha tonta, até ao fim, é o que é, é o que sou.